A CIÊNCIA CIDADÃ PRECISA DE VALIDAÇÃO PROFISSIONAL? NÃO.

Por Maristela Zamoner

A resposta, “NÃO”, que acompanha o título deste artigo, e todo o delineamento que segue, abrangem especificamente a atuação do cientista cidadão independente, cujo perfil foi detalhado no artigo intitulado “Cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã não é cientista de fato?”. Neste citado texto, entre outras questões, demonstramos que este cientista cidadão não publica em plataformas de ciência cidadã para que suas descobertas sejam usadas por cientistas profissionais sem o crédito da autoria original. Lembremos que os interesses dos cientistas profissionais têm relação com o produtivismo científico, que envolve a relação entre quantidades de publicações científicas, aumentos salariais, vantagens carreiristas e poder sobre o acesso a recursos para fins do fazer científico. Neste cenário, as plataformas de ciência cidadã podem parecer uma oportunidade para que estes profissionais produzam mais e com maior velocidade, pela redução, ou mesmo eliminação, de esforços e tempo que habitualmente dedicavam à produção de informações originais e inéditas para suas publicações. E cientistas profissionais manifestam interesse crescente em usar para seus fins a produção desta ciência cidadã independente.

Estabelecido este início, vejamos mais algumas das razões que fundamentam esta resposta "NÃO", sem perder de vista a seguinte questão: a quem interessa mais estabelecer a necessidade de que cientistas profissionais validem o trabalho de cientistas cidadãos independentes?

Esta discussão precisa ser construída com base em alguns aspectos históricos da ciência cidadã e sua relação atual com a ciência profissional. Então vamos a eles. Ao longo dos últimos séculos a ciência cidadã, que é também fundadora da ciência, foi retirada da sua própria prática por mecanismos desenvolvidos pela ciência profissional. Entre estes mecanismos estão os que sublaternizaram o cientista cidadão a um profissional, e aqueles que estabeleceram regras claras de completa exclusão. São exemplos deste processo as publicações em acesso fechado, o impedimento de consulta a materiais como os de coleções biológicas públicas (muitos vindos de esforços empenhados com recursos privados de cientistas cidadãos no passado), a impossibilidade de participação na geração de dados e de suas análises e, em muitos casos, o impedimento de atuação por falta de vínculo institucional e titulação acadêmica.

A ciência cidadã quase desapareceu sofrendo esta continuada e severa inanição, forçada pela imposição de uma pesada exclusão científica institucionalizada. O espaço de participação cidadã no âmbito da ciência profissional deixou de ter a existência que tinha quando a Ciência nasceu. E é depois de séculos que a ciência cidadã renasce mais forte do que nunca, com crescentes milhões de adeptos independentes cada vez mais engajados. No ano de 2014 a expressão "Ciência Cidadã" apareceu pela primeira vez no dicionário Oxford, com o seguinte significado: "citizen science n. scientific work undertaken by members of the general public, often in collaboration with or under the direction of professional scientists and scientific institutions". Para os fins deste artigo é de especial relevância o significado da palavra "often", que em inglês contém a ideia de "muitas vezes". No citado conceito, não foi usada outra palavra, como "always", admitindo-se, portanto, que a ciência cidadã pode ser exercida ou dirigida, em sua completude, sem a colaboração ou o direcionamento de cientistas profissionais, bem como, sem uma tutela institucional. Assim, desde este primeiro conceito proposto em um dicionário, a ciência cidadã independente foi reconhecida. Esta variação de fazeres em ciência cidadã vem sendo discutida sob terminologias como "Top-down" (TD) ou "De cima para baixo", quando uma instituição científica ou um cientista profissional usam o trabalho de voluntários para coletar dados conforme seus interesses, "Bottom-up" (BU) ou "De baixo para cima", quando a ciência é feita pelos interesses de cientistas cidadãos que têm um envolvimento maior em mais etapas da metodologia científica, e "Extreme citizen science", ou "ciência cidadã extrema", quando cientistas cidadãos atuam de maneira completamente independente. De qualquer forma, é reconhecido, inclusive na literatura, este fazer científico independente do cientista cidadão, que também abordamos no livro "Biodiversidade e Ciência Cidadã", publicado em 2021 pela Comfauna Livros. Condicionar a ciência cidadã extrema à necessidade de uma validação profissional é provocar seu extermínio.

Neste recorte inicialmente proposto aqui, apontamos como tecnologias destacadamente relevantes, que viabilizaram este renascimento, as fotografias digitais de biodiversidade, gravação de sons, e as plataformas de ciência cidadã, estas últimas, que criaram um espaço democrático para o fazer científico completo, sem discriminação de vínculo institucional, titulação ou outro.

E como toda ciência legítima, a cidadã da qual falamos aqui, também criou seus próprios mecanismos de avaliação e de validação, que seguem se aprimorando a cada dia em favor da poderosa estruturação de redes científicas que fortalecem cada dia mais a excelência da exatidão metodológica. Entre os principais mecanismos de validação estão a completa transparência e o acesso tanto aberto quanto participativo, que não excluem nem mesmo cientistas profissionais. Então, embora a ciência cidadã NÃO deva ser obrigatoriamente validada pela profissional, seus mecanismos de validação participativa não discriminam o cientista profissional. Basta que o interessado em validar resultados e análises fruto do trabalho de cientistas cidadãos participe sempre que quiser, em igualdade de condições com qualquer outro que se submete às políticas democráticas das plataformas de ciência cidadã. É preciso entender que ali não será possível atuar impositivamente, é lugar de diálogo público, de argumentação e apresentação de fontes para que as análises de resultados sejam construídas coletivamente e sem discriminação, assegurando que as validações metodológicas e de resultados sejam participativas e, acima de tudo, transparentes. É o lugar para se solicitar o uso de conteúdos autorais, para pedir o consentimento, para obter as informações a fim de citar cientificamente o que ali está publicado. Nas principais plataformas de ciência cidadã, títulos de graduação ou pós-graduação, ou um vínculo institucional, não tornam ninguém mais importante que os demais. E se tornassem, é muito provável que estas plataformas não teriam alcançado o sucesso que alcançaram, nem em quantidade de cientistas cidadãos atuantes, e nem em excelência de resultados. O que realmente importa nessas iniciativas, é a contribuição efetiva que cada um é capaz de trazer. Esta estratégia de ciência cidadã extrema, independente, e que vem gerando resultados de valor científico inquestionável, não é proporcionalmente abordada pela literatura profissional. E isto é crítico se considerarmos que a ciência cidadã extrema avança reunindo crescentes milhões de cientistas cidadãos que atuam com autodidatismo, autonomia, liberdade e absoluta independência. Será que uma das razões pelas quais não seja estudada proporcionalmente em seu caráter original se deva ao fato de que sua abrangência na população, e sua transparência metodológica, ainda não tenham sido alcançadas e nem compreendidas pela ciência profissional?

O cientista profissional, muitas vezes, não está acostumado a ambientes abertos e democráticos, tão diferentes da clausura de gavetas e gabinetes seguramente lacrados. Talvez por isso tenha a dificuldade que vemos em lidar com as críticas fundamentadas que cientistas cidadãos e outros interessados fazem, inclusive sobre falhas metodológicas e até mesmo sobre correções de identificações profissionais de espécies.

É importante frisar aqui que as tecnologias de plataformas de ciência cidadã seguem continuamente seu caminho, melhorando mais e mais seus processos participativos de validação, adequados aos seus interesses e objetivos. Por isso, em geral, o cientista cidadão que publica nestas plataformas não tem necessidade de submeter sua produção a nenhuma outra forma de validação externa, especialmente se não for democrática, transparente e participativa. Para um cientista cidadão independente pode ser mais interessante, por exemplo, ter acesso para checar por si cada conhecimento do seu interesse, de forma autodidata, ampliando as possibilidades das análises de seus resultados, do que receber uma validação externa de alguém institucionalizado em outra esfera, e que tem interesses diferentes dos seus. Ao mesmo tempo, o cientista cidadão que ainda assim tem alguma necessidade de subordinar seu trabalho a uma validação profissional externa, é livre para fazê-lo quando quiser. Não há motivo para que se estabeleçam e se reforcem regras, normas, ideias ou mesmo conceitos de ciência cidadã que condicionem, direta ou indiretamente, a validade do trabalho de um cientista cidadão à aprovação de um profissional. Até porque estabelecer este tipo de "valor", seria fomentar mais mecanismos de subalternização que, no passado, excluíram o cientista cidadão da ciência da qual foi fundador.

Não há como negar que estas inovações da ciência cidadã e suas estratégias próprias de validação de métodos e resultados foram eficientes o bastante ao ponto de gerar produtos científicos capazes de acender interesses até dos mais resistentes e conservadores cientistas profissionais. Conforme todo este trabalho suado e caro de cientistas cidadãos ganhou forma ao longo dos anos, e credibilidade, começaram a surgir publicações de cientistas profissionais fazendo uso desta produção científica como se lhes pertencesse, sem consentimento, sem diálogo prévio, sem transparência e sem nem ao menos, citação dos legítimos autores. Estas condutas autoritárias, impositivas e desumanas foram discutidas no artigo "COMO FAZER USO LEGAL E ÉTICO DAS PUBLICAÇÕES DE PLATAFORMAS DE CIÊNCIA CIDADÃ?". Quem não se sente confortável com esta transparência participativa das plataformas de ciência cidadã, não é obrigado a participar. Mas precisa ser ético o suficiente para não retirar resultados dali, publicando-os em seu nome, sem qualquer contrapartida para os autores originais e para a plataforma. Fazer uso do trabalho do cientista cidadão em favor de um terceiro, sem consentimento e tirando-lhe o direito autoral moral do que produziu, nos faz pensar no significado da palavra servidão. Isto é uma falha ética e também metodológica grave, na qual muitos cientistas profissionais vêm incorrendo, sem oportunidade transparente de correção e nem de defesa daqueles que têm seus direitos autorais morais violados. Esta é uma conduta desumana mais grave, quando a condição é imposta arbitrariamente por um funcionário público no exercício de suas funções, ou a pretexto de exercê-las.

Esta realidade da violação de direitos autorais, naturalmente, provoca desconforto e até revolta na comunidade de cientistas cidadãos independentes, que se sentem abusados e discriminados. Algumas das consequências que assistimos são perfis inteiros com todos os registros de biodiversidade sendo apagados das plataformas, na tentativa de proteção contra o uso desumano de seus conteúdos autorais. Outra consequência é o comprometimento do acesso aberto pela ocultação de dados como georreferenciamento, que obrigam interessados no uso das publicações a solicitar consentimento dos autores. Crescem os que configuram suas publicações com "Todos os direitos reservados", apesar de mesmo assim sofrerem abusos por parte de cientistas profissionais que simplesmente publicam os resultados em seus nomes, citando apenas a plataforma, e excluindo os nomes dos autores originais. Como vemos, são contaminações de pressões e vícios da ciência profissional sobre a ciência cidadã. Quem perde é a sociedade.

Infelizmente o cientista cidadão raramente é citado por um cientista profissional que usa suas publicações autorais feitas em plataformas de ciência cidadã. E isto surpreende no que diz respeito à baixa qualidade de estudos neste perfil, pois a correta citação da fonte é algo valorizado pela própria ciência profissional. Quando os autores legítimos não são citados, apenas a plataforma de ciência cidadã, comete-se ainda um erro científico grosseiro equivalente a citar um periódico científico sem citar autor e artigo dele utilizados.

Um cientista cidadão ser incluído de forma justa entre os autores dos artigos que usam suas publicações de maneira determinante para a obra, é ainda algo mais incomum. Mas felizmente produções que unem igualmente cientistas cidadãos e profissionais como autores, começam a despontar como as melhores experiências de parcerias nascidas dos interesses de profissionais éticos pelo uso de publicações das plataformas de ciência cidadã. A expectativa é que figurem como referência justa e inspiradora para iniciativas futuras.

Depois de todo este histórico, notamos que esta caminhada ganhou contornos de dívida histórica que cientistas profissionais contraíram com cientistas cidadãos ao longo dos últimos séculos de exclusão científica. Não podemos esquecer que estes cientistas cidadãos não atuam com o objetivo de entregar o que produzem para que cientistas profissionais publiquem em seus nomes. Estes cientistas cidadãos não estão manifestando amplamente qualquer necessidade de terem seu trabalho validado fora das plataformas nas quais publicam sua ciência. E menos ainda atuam para que suas produções estejam a serviço de encorpar currículos visando carreirismo ou outras vantagens que abrangem melhorias econômicas para terceiros. Para os interesses dos cientistas cidadãos independentes, portanto, a obrigatoriedade de sobrepor uma validação postiça para seu trabalho, feita por interesse profissional, pode se parecer muito mais com uma estratégia de dominação do que com uma necessidade científica.

Apesar de toda esta realidade, também é muito importante reconhecer que atuações conjuntas respeitosas e igualitárias, que congreguem benefícios e objetivos comuns, podem ser saudáveis para estes dois tipos de cientistas e para a sociedade. Mas para que isso se realize de forma plena, é preciso empoderar a ciência cidadã independente, apoiá-la, fortalecê-la, tratá-la como ciência que é, assegurando sua natureza autodidata, sua autonomia, sua igualdade posto que é, talvez, o único contraponto à hegemonia da ciência profissional.

Assim, cientistas profissionais que querem realmente apoiar a ciência cidadã, não deveriam fazê-lo tentando subjugá-la novamente em um claro retrocesso histórico. Mas seria legítimo começar participando honestamente de validações em igualdade de condições nas plataformas de ciência cidadã, se dedicando para que os conhecimentos já produzidos ganhem o acesso aberto, investindo em projetos de democratização de coleções científicas entre outros e encerrando estratégias que amarrem sua atuação a uma instituição ou a uma titulação acadêmica. Mas principalmente, passando a respeitar o cientista cidadão como cientista de fato que ele é, citando seu nome quando fizer uso de sua produção. As parcerias entre cientistas profissionais e cidadãos, são muito bem-vindas e toda a sociedade pode se beneficiar delas. Mas é imperioso que sejam forjadas de forma ética, igualitária, justa, equilibrada, democrática e transparente.

Artigo publicado originalmente em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/07/ciencia-cidada-precisa-validacao.html

Publicado el julio 6, 2023 10:32 MAÑANA por zamoner_maristela zamoner_maristela

Comentarios

Texto maravilhoso, e que possamos fazer da Ciência uma Ciência que deve incluir sempre.

Publicado por roe_brasil hace 10 meses

@roe_brasil, obrigada pela participação! Fico feliz que tenha gostado. Estamos iniciando uma caminhada que merece ser pautada pelo respeito!

Publicado por zamoner_maristela hace 10 meses

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