Archivos de diario de julio 2023

06 de julio de 2023

A CIÊNCIA CIDADÃ PRECISA DE VALIDAÇÃO PROFISSIONAL? NÃO.

Por Maristela Zamoner

A resposta, “NÃO”, que acompanha o título deste artigo, e todo o delineamento que segue, abrangem especificamente a atuação do cientista cidadão independente, cujo perfil foi detalhado no artigo intitulado “Cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã não é cientista de fato?”. Neste citado texto, entre outras questões, demonstramos que este cientista cidadão não publica em plataformas de ciência cidadã para que suas descobertas sejam usadas por cientistas profissionais sem o crédito da autoria original. Lembremos que os interesses dos cientistas profissionais têm relação com o produtivismo científico, que envolve a relação entre quantidades de publicações científicas, aumentos salariais, vantagens carreiristas e poder sobre o acesso a recursos para fins do fazer científico. Neste cenário, as plataformas de ciência cidadã podem parecer uma oportunidade para que estes profissionais produzam mais e com maior velocidade, pela redução, ou mesmo eliminação, de esforços e tempo que habitualmente dedicavam à produção de informações originais e inéditas para suas publicações. E cientistas profissionais manifestam interesse crescente em usar para seus fins a produção desta ciência cidadã independente.

Estabelecido este início, vejamos mais algumas das razões que fundamentam esta resposta "NÃO", sem perder de vista a seguinte questão: a quem interessa mais estabelecer a necessidade de que cientistas profissionais validem o trabalho de cientistas cidadãos independentes?

Esta discussão precisa ser construída com base em alguns aspectos históricos da ciência cidadã e sua relação atual com a ciência profissional. Então vamos a eles. Ao longo dos últimos séculos a ciência cidadã, que é também fundadora da ciência, foi retirada da sua própria prática por mecanismos desenvolvidos pela ciência profissional. Entre estes mecanismos estão os que sublaternizaram o cientista cidadão a um profissional, e aqueles que estabeleceram regras claras de completa exclusão. São exemplos deste processo as publicações em acesso fechado, o impedimento de consulta a materiais como os de coleções biológicas públicas (muitos vindos de esforços empenhados com recursos privados de cientistas cidadãos no passado), a impossibilidade de participação na geração de dados e de suas análises e, em muitos casos, o impedimento de atuação por falta de vínculo institucional e titulação acadêmica.

A ciência cidadã quase desapareceu sofrendo esta continuada e severa inanição, forçada pela imposição de uma pesada exclusão científica institucionalizada. O espaço de participação cidadã no âmbito da ciência profissional deixou de ter a existência que tinha quando a Ciência nasceu. E é depois de séculos que a ciência cidadã renasce mais forte do que nunca, com crescentes milhões de adeptos independentes cada vez mais engajados. No ano de 2014 a expressão "Ciência Cidadã" apareceu pela primeira vez no dicionário Oxford, com o seguinte significado: "citizen science n. scientific work undertaken by members of the general public, often in collaboration with or under the direction of professional scientists and scientific institutions". Para os fins deste artigo é de especial relevância o significado da palavra "often", que em inglês contém a ideia de "muitas vezes". No citado conceito, não foi usada outra palavra, como "always", admitindo-se, portanto, que a ciência cidadã pode ser exercida ou dirigida, em sua completude, sem a colaboração ou o direcionamento de cientistas profissionais, bem como, sem uma tutela institucional. Assim, desde este primeiro conceito proposto em um dicionário, a ciência cidadã independente foi reconhecida. Esta variação de fazeres em ciência cidadã vem sendo discutida sob terminologias como "Top-down" (TD) ou "De cima para baixo", quando uma instituição científica ou um cientista profissional usam o trabalho de voluntários para coletar dados conforme seus interesses, "Bottom-up" (BU) ou "De baixo para cima", quando a ciência é feita pelos interesses de cientistas cidadãos que têm um envolvimento maior em mais etapas da metodologia científica, e "Extreme citizen science", ou "ciência cidadã extrema", quando cientistas cidadãos atuam de maneira completamente independente. De qualquer forma, é reconhecido, inclusive na literatura, este fazer científico independente do cientista cidadão, que também abordamos no livro "Biodiversidade e Ciência Cidadã", publicado em 2021 pela Comfauna Livros. Condicionar a ciência cidadã extrema à necessidade de uma validação profissional é provocar seu extermínio.

Neste recorte inicialmente proposto aqui, apontamos como tecnologias destacadamente relevantes, que viabilizaram este renascimento, as fotografias digitais de biodiversidade, gravação de sons, e as plataformas de ciência cidadã, estas últimas, que criaram um espaço democrático para o fazer científico completo, sem discriminação de vínculo institucional, titulação ou outro.

E como toda ciência legítima, a cidadã da qual falamos aqui, também criou seus próprios mecanismos de avaliação e de validação, que seguem se aprimorando a cada dia em favor da poderosa estruturação de redes científicas que fortalecem cada dia mais a excelência da exatidão metodológica. Entre os principais mecanismos de validação estão a completa transparência e o acesso tanto aberto quanto participativo, que não excluem nem mesmo cientistas profissionais. Então, embora a ciência cidadã NÃO deva ser obrigatoriamente validada pela profissional, seus mecanismos de validação participativa não discriminam o cientista profissional. Basta que o interessado em validar resultados e análises fruto do trabalho de cientistas cidadãos participe sempre que quiser, em igualdade de condições com qualquer outro que se submete às políticas democráticas das plataformas de ciência cidadã. É preciso entender que ali não será possível atuar impositivamente, é lugar de diálogo público, de argumentação e apresentação de fontes para que as análises de resultados sejam construídas coletivamente e sem discriminação, assegurando que as validações metodológicas e de resultados sejam participativas e, acima de tudo, transparentes. É o lugar para se solicitar o uso de conteúdos autorais, para pedir o consentimento, para obter as informações a fim de citar cientificamente o que ali está publicado. Nas principais plataformas de ciência cidadã, títulos de graduação ou pós-graduação, ou um vínculo institucional, não tornam ninguém mais importante que os demais. E se tornassem, é muito provável que estas plataformas não teriam alcançado o sucesso que alcançaram, nem em quantidade de cientistas cidadãos atuantes, e nem em excelência de resultados. O que realmente importa nessas iniciativas, é a contribuição efetiva que cada um é capaz de trazer. Esta estratégia de ciência cidadã extrema, independente, e que vem gerando resultados de valor científico inquestionável, não é proporcionalmente abordada pela literatura profissional. E isto é crítico se considerarmos que a ciência cidadã extrema avança reunindo crescentes milhões de cientistas cidadãos que atuam com autodidatismo, autonomia, liberdade e absoluta independência. Será que uma das razões pelas quais não seja estudada proporcionalmente em seu caráter original se deva ao fato de que sua abrangência na população, e sua transparência metodológica, ainda não tenham sido alcançadas e nem compreendidas pela ciência profissional?

O cientista profissional, muitas vezes, não está acostumado a ambientes abertos e democráticos, tão diferentes da clausura de gavetas e gabinetes seguramente lacrados. Talvez por isso tenha a dificuldade que vemos em lidar com as críticas fundamentadas que cientistas cidadãos e outros interessados fazem, inclusive sobre falhas metodológicas e até mesmo sobre correções de identificações profissionais de espécies.

É importante frisar aqui que as tecnologias de plataformas de ciência cidadã seguem continuamente seu caminho, melhorando mais e mais seus processos participativos de validação, adequados aos seus interesses e objetivos. Por isso, em geral, o cientista cidadão que publica nestas plataformas não tem necessidade de submeter sua produção a nenhuma outra forma de validação externa, especialmente se não for democrática, transparente e participativa. Para um cientista cidadão independente pode ser mais interessante, por exemplo, ter acesso para checar por si cada conhecimento do seu interesse, de forma autodidata, ampliando as possibilidades das análises de seus resultados, do que receber uma validação externa de alguém institucionalizado em outra esfera, e que tem interesses diferentes dos seus. Ao mesmo tempo, o cientista cidadão que ainda assim tem alguma necessidade de subordinar seu trabalho a uma validação profissional externa, é livre para fazê-lo quando quiser. Não há motivo para que se estabeleçam e se reforcem regras, normas, ideias ou mesmo conceitos de ciência cidadã que condicionem, direta ou indiretamente, a validade do trabalho de um cientista cidadão à aprovação de um profissional. Até porque estabelecer este tipo de "valor", seria fomentar mais mecanismos de subalternização que, no passado, excluíram o cientista cidadão da ciência da qual foi fundador.

Não há como negar que estas inovações da ciência cidadã e suas estratégias próprias de validação de métodos e resultados foram eficientes o bastante ao ponto de gerar produtos científicos capazes de acender interesses até dos mais resistentes e conservadores cientistas profissionais. Conforme todo este trabalho suado e caro de cientistas cidadãos ganhou forma ao longo dos anos, e credibilidade, começaram a surgir publicações de cientistas profissionais fazendo uso desta produção científica como se lhes pertencesse, sem consentimento, sem diálogo prévio, sem transparência e sem nem ao menos, citação dos legítimos autores. Estas condutas autoritárias, impositivas e desumanas foram discutidas no artigo "COMO FAZER USO LEGAL E ÉTICO DAS PUBLICAÇÕES DE PLATAFORMAS DE CIÊNCIA CIDADÃ?". Quem não se sente confortável com esta transparência participativa das plataformas de ciência cidadã, não é obrigado a participar. Mas precisa ser ético o suficiente para não retirar resultados dali, publicando-os em seu nome, sem qualquer contrapartida para os autores originais e para a plataforma. Fazer uso do trabalho do cientista cidadão em favor de um terceiro, sem consentimento e tirando-lhe o direito autoral moral do que produziu, nos faz pensar no significado da palavra servidão. Isto é uma falha ética e também metodológica grave, na qual muitos cientistas profissionais vêm incorrendo, sem oportunidade transparente de correção e nem de defesa daqueles que têm seus direitos autorais morais violados. Esta é uma conduta desumana mais grave, quando a condição é imposta arbitrariamente por um funcionário público no exercício de suas funções, ou a pretexto de exercê-las.

Esta realidade da violação de direitos autorais, naturalmente, provoca desconforto e até revolta na comunidade de cientistas cidadãos independentes, que se sentem abusados e discriminados. Algumas das consequências que assistimos são perfis inteiros com todos os registros de biodiversidade sendo apagados das plataformas, na tentativa de proteção contra o uso desumano de seus conteúdos autorais. Outra consequência é o comprometimento do acesso aberto pela ocultação de dados como georreferenciamento, que obrigam interessados no uso das publicações a solicitar consentimento dos autores. Crescem os que configuram suas publicações com "Todos os direitos reservados", apesar de mesmo assim sofrerem abusos por parte de cientistas profissionais que simplesmente publicam os resultados em seus nomes, citando apenas a plataforma, e excluindo os nomes dos autores originais. Como vemos, são contaminações de pressões e vícios da ciência profissional sobre a ciência cidadã. Quem perde é a sociedade.

Infelizmente o cientista cidadão raramente é citado por um cientista profissional que usa suas publicações autorais feitas em plataformas de ciência cidadã. E isto surpreende no que diz respeito à baixa qualidade de estudos neste perfil, pois a correta citação da fonte é algo valorizado pela própria ciência profissional. Quando os autores legítimos não são citados, apenas a plataforma de ciência cidadã, comete-se ainda um erro científico grosseiro equivalente a citar um periódico científico sem citar autor e artigo dele utilizados.

Um cientista cidadão ser incluído de forma justa entre os autores dos artigos que usam suas publicações de maneira determinante para a obra, é ainda algo mais incomum. Mas felizmente produções que unem igualmente cientistas cidadãos e profissionais como autores, começam a despontar como as melhores experiências de parcerias nascidas dos interesses de profissionais éticos pelo uso de publicações das plataformas de ciência cidadã. A expectativa é que figurem como referência justa e inspiradora para iniciativas futuras.

Depois de todo este histórico, notamos que esta caminhada ganhou contornos de dívida histórica que cientistas profissionais contraíram com cientistas cidadãos ao longo dos últimos séculos de exclusão científica. Não podemos esquecer que estes cientistas cidadãos não atuam com o objetivo de entregar o que produzem para que cientistas profissionais publiquem em seus nomes. Estes cientistas cidadãos não estão manifestando amplamente qualquer necessidade de terem seu trabalho validado fora das plataformas nas quais publicam sua ciência. E menos ainda atuam para que suas produções estejam a serviço de encorpar currículos visando carreirismo ou outras vantagens que abrangem melhorias econômicas para terceiros. Para os interesses dos cientistas cidadãos independentes, portanto, a obrigatoriedade de sobrepor uma validação postiça para seu trabalho, feita por interesse profissional, pode se parecer muito mais com uma estratégia de dominação do que com uma necessidade científica.

Apesar de toda esta realidade, também é muito importante reconhecer que atuações conjuntas respeitosas e igualitárias, que congreguem benefícios e objetivos comuns, podem ser saudáveis para estes dois tipos de cientistas e para a sociedade. Mas para que isso se realize de forma plena, é preciso empoderar a ciência cidadã independente, apoiá-la, fortalecê-la, tratá-la como ciência que é, assegurando sua natureza autodidata, sua autonomia, sua igualdade posto que é, talvez, o único contraponto à hegemonia da ciência profissional.

Assim, cientistas profissionais que querem realmente apoiar a ciência cidadã, não deveriam fazê-lo tentando subjugá-la novamente em um claro retrocesso histórico. Mas seria legítimo começar participando honestamente de validações em igualdade de condições nas plataformas de ciência cidadã, se dedicando para que os conhecimentos já produzidos ganhem o acesso aberto, investindo em projetos de democratização de coleções científicas entre outros e encerrando estratégias que amarrem sua atuação a uma instituição ou a uma titulação acadêmica. Mas principalmente, passando a respeitar o cientista cidadão como cientista de fato que ele é, citando seu nome quando fizer uso de sua produção. As parcerias entre cientistas profissionais e cidadãos, são muito bem-vindas e toda a sociedade pode se beneficiar delas. Mas é imperioso que sejam forjadas de forma ética, igualitária, justa, equilibrada, democrática e transparente.

Artigo publicado originalmente em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/07/ciencia-cidada-precisa-validacao.html

Publicado el julio 6, 2023 10:32 MAÑANA por zamoner_maristela zamoner_maristela | 2 comentarios | Deja un comentario

07 de julio de 2023

INATURALIST E O CURRÍCULO MANCHADO PELO DESRESPEITO AOS DIREITOS RESERVADOS

Por Maristela Zamoner

Meus registros no iNaturalist são, quase na sua integralidade, configurados sem nenhuma licença de uso, com todos os direitos reservados, portanto, o uso de fotografias e sons é proibido sem minha expressa autorização, como é ilegal o uso de quaisquer dados, sem a citação nominal da autoria. Já recebi críticas por isso, de pessoas que desejavam fazer uso de resultados sem precisar solicitar autorização. Então, vale uma boa explicação da razão desta escolha.

Quando publicamos no iNaturalist com a sua configuração padrão, reconhecida pela sigla "BY-NC", autorizamos outras pessoas a usarem nossos resultados de forma não comercial, embora com o dever de citar o autor. Isto significa, resumindo, que assim você autoriza o uso de seus dados, suas fotografias, seus sons e o que mais você acrescentar, sem a necessidade nem mesmo de ser informado sobre como e para que fins este uso do seu trabalho será feito, desde que, basicamente, seu nome seja citado e este uso não seja comercial. E mais do que isso, com esta configuração padrão, você autoriza o automático compartilhamento dos dados que produziu no Global Biodiversity Information Facility, o GBIF, uma organização internacional que se dedica a disponibilizar dados científicos de biodiversidade pela internet. E a política de direitos autorais desta entidade admite o uso de dados sem créditos autorais.

No iNaturalist encontramos a orientação expressa a quem quer fazer uso de qualquer conteúdo das observações ali publicadas, para citar o nome dos autores. Esta orientação se direciona a duas distintas circunstâncias. A primeira é quando o volume de dados utilizados estiver em torno de até 10 publicações, ou observações. A segunda é quando se tratam de dados que não estão compartilhados no GBIF.

Todas as alternativas de licenças admitem algum tipo de uso sem que você seja informado previamente. Então, a forma de proteger nossas publicações contra usos que desconhecemos e da perda de direitos de citação pelo compartilhamento no GBIF, é configurá-las, todas, "sem licenças", reservando todos os direitos a quem arcou com custos intelectuais e econômicos da sua produção. E isto pode ser feito acessando: 1 - Configurações da conta; 2 - Conteúdo & Exibição; 3 - Em "Licenciando", fazendo a marcação em todas as três opções, "Licença padrão para suas observações", "Licença padrão para suas fotos" e "Licença padrão para sons", da última opção na qual aparece: "Sem licenças (todos os direitos reservados)". Note que isto protege não somente fotografias e sons como todos os conteúdos das suas observações, ou seja, todos os seus dados, resultados e conclusões. Assim você consegue cuidar do uso que pode ser feito do conteúdo que produziu, o seu conteúdo, exceto naquilo que diz respeito aos direitos concedidos ao iNaturalist em seus Termos de Serviço. E o iNaturalist usa seus dados, por exemplo, para produzir informações resultantes de compilados massivos, como gráficos ou mapas e suas fotografias para a alimentação de algoritmos de inteligência artificial que ajudam a aprimorar os processos de identificações automáticas de espécies.

Então alguém que deseja usar o que você produziu pode questionar seu posicionamento de reservar todos os direitos, alegando que você não quer que sua produção contribua com o conhecimento sobre a biodiversidade. Mas não se deixe impressionar por este argumento, pois ele não é verdadeiro. Primeiro porque sua publicação no iNaturalist está em acesso aberto e isso por si só já é contribuição para o conhecimento. Segundo, como acesso aberto não é sinônimo de qualquer uso liberado, basta que quem tem o desejo de fazer uso do seu trabalho, solicite a sua autorização. Então você avalia se o uso será ou não compatível com seus valores e decide por autorizar ou não. E mais, sua produção é importante contribuição para o aprimoramento continuado das identificações automáticas de espécies. Então você pode resistir sem peso de consciência a este assédio.

Sim, sofremos assédio e pressão, de pessoas que não alcançam por si os resultados que alcançamos e querem fazer uso do que produzimos em seus nomes, sem precisar nos solicitar, nem informar e nem atribuir crédito a autoria original. E este assédio inclui críticas à ciência cidadã e seus métodos independentes, à produção de quem publica em plataformas de ciência cidadã sem se subordinar antes a um cientista profissional, ao fato de que reservamos todos os direitos sobre nossos dados e fotografias tornando usos não consentidos criminosos, e sofremos ainda abusos, como o de simplesmente se apropriarem de nossa produção publicando em seus nomes, sem que sejamos sequer citados nominalmente. Configurar todos os direitos reservados é apenas uma defesa neste cenário, uma tentativa de ter um uso justo do que fazemos com tanta dedicação.

E é aqui que surge o argumento de que não adianta publicar no iNaturalist "sem licença" nenhuma, porque mesmo assim aqueles que deveriam ser as maiores referências de ética científica da sociedade, simplesmente se apropriam sem consentimento do que produzimos, apagando nossos nomes. E este argumento até tem razão de ser. Só no meu caso, que tenho a integralidade das minhas publicações no iNaturalist sem nenhuma licença de uso, já sofri uso de fotografias não autorizadas em livro publicado por pesquisadores e vendido na Europa com crédito incorreto, em sites de divulgação científica, em diversas formas de publicação e até de dezenas de dados inéditos, repito, sem nenhuma licença de uso, usados em listas de espécies com propósito de inventariamento, sem meu consentimento e sem nem a atribuição do devido crédito autoral. E não sou a única vítima deste tipo de abuso, muitos dos colegas de observação de biodiversidade relatam que seus direitos autorais são violados de diferentes formas.

Mas é aqui que, mesmo vitimados, precisamos serenidade e confiança. Trabalhos, quaisquer que sejam, por quem quer que sejam feitos, que usam conteúdos sem licença, sem consentimento e sem nem os créditos aos autores legítimos, são prova, em si mesmos, de má conduta. E seus autores pesquisadores se revelam para a sociedade, no seu próprio fazer científico, como o são seus atos: abusivos, desumanos e até criminosos. São precioso exemplo do que a sociedade não deseja para a ciência.

Quando falamos de conteúdos produzidos no Brasil, por brasileiros, usados indevidamente por brasileiros no Brasil, em publicações brasileiras, vale a nossa lei no. 9.610 de 1998, de direitos autorais, que, conforme a convenção de Berna da qual o Brasil é signatário, estabelece como direito moral do autor o de ter sua autoria reconhecida por seu nome, pseudônimo ou apelido (Art. 24, II). A violação de direitos morais neste caso tem previsão no Código Penal, Art. 184, e entre as punições ali previstas, está a detenção do criminoso de três meses a um ano. E constatamos pesquisadores se esquivarem do risco de punição prevista em lei, inviabilizando a defesa das vítimas, pelo recurso da inexatidão metodológica. Um exemplo é quando estes atores citam apenas a plataforma de ciência cidadã enquanto escondem os conteúdos e autores originais delas usados ao misturar indistintamente seus resultados com os de coleções científicas. Mas mesmo assim, a prova da má conduta científica do uso de conteúdos sem a citação de seus autores, passíveis ou não de identificação, permanecerá irreversivelmente manchando seu histórico de cientista. E esta mancha na carreira não deixa de ser uma forma de punição deontológica em defesa das vítimas, que foi assegurada de forma prévia justamente pela configuração dos conteúdos usados, com todos os direitos reservados.

As plataformas de ciência cidadã ainda são algo novo no mundo da ciência, e funcionam de maneira muito diferente dos ambientes tradicionais nos quais os cientistas tinham todo o poder sobre dados primários e a segurança das portas fechadas para fazer seu uso. No ambiente do iNaturalist os dados não são primários, então não é possível usar indevidamente suas publicações, sem consequências para a credibilidade de quem faz esse uso.

Serão necessários muitos erros, muitos abusos e um bom tempo de adaptação a esta nova forma transparente e participativa de fazer ciência, até que o respeito se torne o único caminho, se não pelo desejo de agir eticamente, por não se querer o currículo manchado irreversivelmente pela má conduta científica.

O lado positivo de tudo isso é que apesar desses exemplos desumanos, já existem profissionais sérios, que fazem contato, solicitam uso e realizam suas publicações incluindo o que nós produzimos, de maneira limpa, bem identificada, transparente, e fazendo questão de citar todos os nomes dos autores originais. Alguns até têm a generosidade de nos convidar a parcerias na autoria de artigos que incluem nossos resultados. São pessoas que poderiam estar se aproveitando de suas posições encasteladas em instituições científicas tradicionais para justificar abusos, mas escolheram por conta própria simplesmente reconhecer e respeitar o valor da ciência cidadã. Estes são os cientistas profissionais capazes de alimentar nossas esperanças. Afinal, são eles que, mesmo em poucos, se apresentam para a sociedade como verdadeiros exemplos da conduta científica ética que almejamos. São eles que, inevitavelmente, ocuparão a posição de referência lúcida, altruísta e digna para o futuro da salutar e produtiva relação entre a ciência cidadã e a profissional.

Publicado originalmente em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/07/publicacoes-sem-licenca-de-uso-no.html

Publicado el julio 7, 2023 06:19 TARDE por zamoner_maristela zamoner_maristela | 0 comentarios | Deja un comentario

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